domingo, 11 de junho de 2023

Será o livre arbítrio uma característica distintiva da condição humana?

 António Padrão


«Humano(s) – ou a nova condição humana (encontrar a relação com a essência)» é o tema que a equipa da defacto propôs à comunidade do Agrupamento de Escolas Alberto Sampaio para reflexão, partindo, pois, do princípio de que há uma «condição humana» (seja nova, ou não). Mas, se há, qual é a sua característica distintiva? Até ao século XVII, teólogos e filósofos apresentavam a alma como aquilo que distingue o ser humano no conjunto dos seres vivos. Alguns, como Platão (c. 425 a.C.-347 a.C.) e Descartes (1596-1650), apresentavam a alma como um princípio distinto do corpo, assumindo assim uma conceção dualista do ser humano, mas, dadas as dificuldades do dualismo cartesiano, o conceito de alma parece ter sido abandonado, tendo sido substituído, a partir da época moderna, pela liberdade, pela linguagem ou pela capacidade de aprendizagem cultural, para pensar a especificidade do humano. Mas também por outros conceitos.

Analisando friamente as muitas tentativas de descrever alguma parte do que é distintivo da condição humana – uso da linguagem (Chomsky, Bennett), desejos de segunda ordem (Frankfurt), intenções de segunda ordem (Grice), convenção (Lewis), liberdade (Kant, Sartre), autoconsciência (Kant, Fichte, Hegel), riso e choro (Plessner), capacidade de aprendizagem cultural (Tomasello) – ficará certamente persuadido de que cada um deles está a identificar uma parte de um feito holístico. (Scruton, 2017, p. 51)

O que é distintivo da condição humana talvez seja, então, o conjunto destas características, mas quero concentrar-me apenas na liberdade. Será a liberdade uma característica distintiva da condição humana? Foi esta a pergunta que fiz ao ChatGPT (OpenAI, 2023). Eis a resposta:

A liberdade é uma ideia complexa e altamente valorada na sociedade humana, mas não é uma característica distintiva da condição humana. Outros seres vivos também podem experimentar algum grau de liberdade, e a liberdade individual pode ser limitada por questões sociais, políticas e filosóficas. Além disso, a noção de liberdade é culturalmente construída e varia amplamente entre diferentes sociedades e épocas. Portanto, é possível argumentar que a liberdade não é uma característica intrínseca à condição humana.

Resposta nada má, para uma máquina, mas parece que o ChatGPT não percebeu bem a minha pergunta (um indício de que não estamos realmente perante Inteligência Artificial [IA], ao contrário do que tem sido abundantemente referido nos media). Não, não é na liberdade individual, social ou política que estou a pensar como caraterística distintiva da condição humana. Estou a pensar na liberdade da vontade, também entendida como livre‑arbítrio. Reformulo a pergunta: Será o livre‑arbítrio uma característica distintiva da condição humana? Desta vez, o ChatGPT (OpenAI, 2023) parece ter percebido (na verdade, o ChatGPT não percebe nada – a única coisa que faz é procurar no grande conjunto de dados textuais com que é alimentado, para devolver uma resposta que nem sempre é correta):

O livre-arbítrio é uma ideia controvertida e ainda não é claro se é uma característica distintiva da condição humana. Por um lado, muitas tradições filosóficas e religiosas afirmam que os seres humanos têm livre-arbítrio, ou seja, a capacidade de tomar decisões e agir de forma independente. Por outro lado, muitas teorias científicas, como o determinismo, argumentam que as ações humanas são resultado de causas físicas e não são determinadas pelo livre-arbítrio. Portanto, a questão do livre-arbítrio ainda é objeto de debate e não é possível afirmar categoricamente se é ou não uma característica distintiva da condição humana.

Nada má, outra vez. Para uma máquina, a resposta impressiona. É, sem dúvida, verdade que «não é possível afirmar categoricamente se é ou não uma característica distintiva da condição humana», mas uma coisa é certa: o livre‑arbítrio só pode ser uma característica distintiva da condição humana, se existir. Mas não é óbvio que o livre‑arbítrio existe? Não é óbvio que temos «a capacidade de tomar decisões e agir de forma independente»? Não é óbvio que o leitor está a ler este texto porque quer e que poderia ter escolhido não o ler? Não é óbvio que foi o leitor que escolheu (ou vai escolher), ainda hoje, o que comer ao almoço? É isto o livre‑arbítrio: escolher fazer uma coisa, mas poder ter escolhido fazer outra. Ter livre‑arbítrio é, portanto, ter o poder de tomar decisões livremente. E estamos obviamente convencidos de que temos este poder. Mas será que temos?

Há, pelo menos, três desafios ao livre‑arbítrio (embora o ChatGPT só tenha identificado um): o teológico, o lógico e o científico. Suponhamos que o Deus teísta existe. Ora, sendo Ele omnisciente, sabe não só o que fizemos no passado, mas também o que faremos no futuro. Mas, neste caso, como é possível dizer que algumas das nossas decisões são livres? Afinal, se Deus já sabe, agora, o que vamos decidir fazer amanhã, por exemplo, então não poderemos escolher não o fazer e, portanto, não temos livre-arbítrio. Este é o desafio teológico. Vejamos o desafio lógico. Dada uma proposição qualquer P, ou P é verdadeira ou P é falsa; P e não-P não podem ser ambas verdadeiras. Imaginemos que P representa a seguinte proposição: «O leitor vai ler a defacto amanhã à tarde». Agora, atente no seguinte argumento (adaptado de Morris, 2000, pp. 123-124):

Ou o leitor vai ler a defacto amanhã à tarde, ou não vai.

Se o leitor vai ler a defacto amanhã à tarde, nada do que fizer entre este momento e então o impedirá de ler a defacto.

Se o leitor não vai ler a defacto amanhã à tarde, qualquer esforço que fizer entre agora e então para ler a defacto será infrutífero.

Portanto, o leitor não possui agora duas opções igualmente disponíveis de ler ou não ler a defacto amanhã à tarde.

Logo, o leitor não é realmente livre quanto a se vai ler ou não a defacto amanhã à tarde.

Da aplicação deste raciocínio a qualquer proposição no tempo futuro parece seguir-se que nunca somos livres a respeito de nada no futuro. E, portanto, parece que não temos livre‑arbítrio.

O terceiro desafio ao livre-arbítrio – e talvez o mais importante – é o desafio do determinismo causal: a ideia de que todos os acontecimentos são efeitos de causas anteriores.  Ora, as nossas decisões também são acontecimentos. E se as nossas decisões também são acontecimentos, então também são efeitos de causas anteriores. Mas se são efeitos de causas anteriores, parece que não são livres. Mas de onde é que vem esta ideia do determinismo? Da ciência. Pelo menos desde Newton (1642-1727), a Natureza é vista como um enorme mecanismo, no qual os seres humanos não passam de meras peças que obedecem às mesmas leis e causas que os outros corpos físicos. Assim, uma IA (ou outra, como o demónio de Laplace (1749-1827)) suficientemente poderosa, que conhecesse o estado do universo num determinado instante e as leis que o regem, seria capaz de dar conta de todos os acontecimentos ou estados de coisas anteriores, bem como de todos os acontecimentos ou estados de coisas futuros, e, portanto, de cada uma das nossas decisões e ações.

Temos aqui, assim, um conflito entre duas ideias que parecem incompatíveis: o determinismo e o livre-arbítrio. Se o determinismo for verdadeiro, as nossas decisões dependem de causas anteriores e estas, por sua vez, também dependem de causas anteriores, e assim sucessivamente.  Quer dizer que todas as nossas decisões dependem de causas que são anteriores ao nosso nascimento. E, se for assim, parece que não temos livre-arbítrio, pois a decisão de as realizar não está sob o nosso controlo. Mas continua a parecer-nos óbvio que algumas das nossas decisões, como, por exemplo, a de continuar (ou não) a ler este texto agora, ou a de ler (ou não) a defacto amanhã à tarde, ou a de (não) votar no Partido Socialista [PS] nas próximas eleições legislativas, estão sob o nosso controlo, e, portanto, dependem apenas da nossa vontade; e todos os dias experienciamos ações deste tipo. Mas, neste caso, parece que o determinismo é falso. Assim, parece não haver como conciliar estas duas ideias. É, pois, este o problema (da compatibilidade) do livre‑arbítrio: será o livre-arbítrio compatível com o determinismo?

Os deterministas radicais, que «definem uma ação livre como um evento ligado às intenções da pessoa que não tem causa» (Morris, 2000, p. 130) pensam que o livre-arbítrio e o determinismo são incompatíveis, isto é, não podem coexistir, e que não existe livre-arbítrio, pois o determinismo é verdadeiro. Parece-nos que temos livre-arbítrio, mas isso não passa de uma ilusão. E de onde resulta essa ilusão? Do desconhecimento das causas das nossas decisões. Assim, quando tomamos a decisão de fazer uma coisa, dadas as causas anteriores, não poderíamos ter escolhido fazer outra. Não existem, portanto, possibilidades alternativas de ação. Estou, agora, a imaginar o leitor, que exerceu o seu direito de voto nas eleições legislativas de 2015 ou 2019 ou 2022, a suspirar de alívio em relação a algo que o consumia há uns meses: o leitor sentia-se responsável, ainda que em pequeno grau, pelo estado em que se encontra a Educação (ou a Saúde, ou a Habitação) em Portugal, pois votou no PS e o PS conduziu-nos a este estado de coisas. Mas, se os deterministas radicais tiverem razão, o leitor não tinha realmente ao seu dispor a alternativa de não votar no PS, e, portanto, não pode ser responsabilizado pelo seu voto, porque a decisão de votar no PS não estava sob o seu controlo (afinal, a sua decisão resultou de causas que são anteriores ao seu nascimento). Aplique o mesmo raciocínio a todas as suas decisões e verá que não poderá ser responsabilizado por nenhuma. Que alívio, não? Então aquela culpa e os remorsos que sentia em relação a algumas das coisas que fez e que pensa que não devia ter feito não têm razão de ser? Não, não têm. Afinal, se for determinista radical, o leitor pensa que não poderia ter feito outra coisa diferente do que fez. Portanto, não pode ser responsabilizado pelas suas ações, não há razão para sentir culpa ou remorso nem para ser elogiado por algo que tenha feito bem. Nem poderia estar de acordo com o Chefe de Estado, que «acredita que os suspeitos de abusos sexuais na Igreja devem ser imediatamente suspensos» (RTP, 2023) ou com Daniel Sampaio (que integrou a Comissão Independente para o estudo de abusos na Igreja), que pensa que «a Igreja é responsável por milhares de vítimas de abuso sexual» (RTP1, 2023). Mas pense outra vez. Parece-lhe que os deterministas radicais têm razão? A mim, não. Continuo a pensar que sou responsável por algumas das minhas decisões; e que os autores de abusos sexuais são responsáveis pelo que fizeram e que, já agora, o ministro da Educação e o primeiro-ministro são responsáveis pelo atual estado de coisas nas escolas (também penso que, se o leitor votou no PS, tem alguma responsabilidade, mas, acredite, eu não).

Os libertistas, que, tal como os deterministas radicais, são incompatibilistas, também pensam que o livre‑arbítrio e o determinismo são incompatíveis, mas acreditam que algumas das nossas ações são livres. Rejeitam, portanto, o determinismo. A vantagem do libertismo é que está de acordo com o que nos parece óbvio, ou seja, que temos livre-arbítrio. É isto o que nos diz a nossa experiência: quando decidi não votar no PS em 2015 nem em 2019 nem em 2022, vários fatores entraram na minha decisão, mas a minha decisão foi livre porque não foi um mero efeito desses fatores. E parece-me que, se o tivesse querido, poderia ter votado no PS. Também me parece que o leitor poderia não ter votado e que os membros da Igreja poderiam não ter cometido os abusos sexuais. Portanto, o leitor deve ser responsabilizado pelo atual estado de coisas no ensino e os membros da Igreja pelos abusos sexuais. Está, então, resolvido: temos livre-arbítrio e podemos ser responsabilizados pelas nossas ações. Estará? Bem, o libertismo também enfrenta algumas dificuldades. Os libertistas «imaginam um ato livre como um evento envolvendo o corpo ou mente de um ser humano, que corresponde às intenções daquela pessoa mas ocorre sem uma causa» (Morris, 2000, p. 131). Mas,

Se as nossas ações não estão determinadas causalmente, como surgirão supostamente? O que produzirá ao certo as nossas decisões? Podemos imaginar que há, dentro de cada um de nós, uma espécie de “ser mental” cujas decisões não estão constrangidas pelas leis causais – um controlador fantasmagórico que faz escolhas independentemente daquilo que ocorre no cérebro. Mas isto não é credível. Vai contra o que a ciência nos diz sobre o funcionamento das coisas. Não há provas de qualquer tipo da existência de uma “energia mental” que atue dentro de nós, desligada da operação do nosso sistema neurológico. E, mesmo pondo de parte a ciência, esta especulação parece um conto de fadas.

No entanto, se não devemos supor que há dentro de nós uma entidade mental desconectada a controlar as coisas, o que haveremos de pensar? Que uma parte do cérebro opera à margem da rede causal do mundo? Isto parece uma tolice, mas é difícil pensar em algo melhor. Parece que não dispomos de uma perspetiva plausível que dê sentido à “liberdade” dos libertistas. (Rachels, 2009, p. 191)

Afinal, não está resolvido. Para os libertistas, as nossas escolhas livres não são determinadas nem são aleatórias. Sendo assim, não se percebe o que as torna livres. Portanto, o libertismo não é plausível.

Restam-nos os compatibilistas. Os filósofos compatibilistas (alguns dos quais são conhecidos como deterministas moderados) pensam que o livre‑arbítrio e o determinismo são compatíveis, isto é, pensam que mesmo que todas as nossas ações sejam determinadas, algumas são livres. Os compatibilistas redefinem o conceito de livre-arbítrio: uma ação livre é aquela que «é causada pelas crenças e desejos da pessoa, desde que a pessoa não tenha sido compelida a ter essas crenças e desejos» (Sider, 2010, p. 168). Assim, se o leitor continua a ler este texto porque o deseja, e não foi compelido a ter este desejo, esta sua ação é livre, apesar de ser causalmente determinada. Se o leitor, que votou no PS, quis votar no PS e não foi forçado a isso, a sua ação foi livre, apesar de haver causas que o levaram a votar no PS. Se os abusos sexuais cometidos pelos membros da Igreja resultaram das suas crenças e desejos, e as suas crenças e desejos não foram compelidos, então as ações dos membros da Igreja foram livres, apesar de terem sido determinadas por causas anteriores, pois todas as ações têm causas anteriores. Assim, parece que tanto o leitor como os membros da Igreja podem ser responsabilizados pelas suas ações. O leitor está certamente a pensar que o compatibilismo é uma boa teoria, até porque nos permite «ficar com o bolo e comê-lo ao mesmo tempo: podemos manter simultaneamente a liberdade e o determinismo» (Sider, 2010, p. 161), as duas ideias que, desde o início, nos pareciam verdadeiras, mas que julgávamos incompatíveis.  Não há, portanto, nenhum conflito entre determinismo e livre-arbítrio. Mas como é isto possível? Com um truque – o truque da redefinição do conceito de livre-arbítrio. O leitor reparou? Os compatibilistas não definem ação livre como ação sem causas, mas como não constrangida. A minha ação é livre se resultar das minhas crenças e desejos e se for realizada sem coações internas ou externas. E, acrescentam os compatibilistas, se eu tivesse desejado fazer outra coisa diferente, poderia ter feito outra coisa diferente. Portanto, tenho possibilidades alternativas de ação. Mas é aqui que está o truque, ou a «batota», com diz Veríssimo (2022): se o determinismo é verdadeiro, eu não poderia ter desejado outra coisa diferente. E, neste caso, também não existe genuína responsabilidade moral. Mas porquê? Porque, «em última análise o nosso caráter e os nossos desejos são causados por forças que não controlamos» (Rachels, 2009, p. 196). Assim, a resposta compatibilista não resolve o problema do livre‑arbítrio: é uma «fuga» ao problema (Searle, 2020, p. 285).

E agora, em que ficamos? É, ou não, o livre-arbítrio compatível com o determinismo? E existe, ou não, livre‑arbítrio? O leitor decida por si, mas eu prefiro pensar que temos livre-arbítrio, e que o determinismo é falso. Parece-me que Peter van Inwagen – um filósofo libertista – tem razão ao considerar que o livre‑arbítrio é um mistério que deve ser aceite como tal, porque todas as alternativas são ainda mais misteriosas (citado por Galvão, 2019). Segundo Inwagen (2013), temos mais certeza de que temos livre-arbítrio do que da maioria das premissas dos argumentos que procuram mostrar que não temos livre-arbítrio. Para este filósofo, negar o livre‑arbítrio implica que «a moralidade deixaria de fazer sentido, quando lhe parece óbvio que a moralidade faz todo o sentido – isto é, que temos deveres morais e que por vezes somos moralmente responsáveis pelo que fazemos» (Galvão, 2019). Ou, como diz Searle (2020, p. 282), «Quando estamos a tomar decisões, não conseguimos agir senão sob o pressuposto de que genuinamente temos livre‑arbítrio» e «Temos de viver sob o pressuposto de que a nossa tomada de decisão livre faz algum tipo de diferença» (p. 284).

E, afinal, o livre arbítrio é, ou não, uma característica distintiva da condição humana? Ainda que seja verdade que «não é possível afirmar categoricamente se é ou não uma característica distintiva da condição humana», penso que é uma das caraterísticas. Mas, mesmo que o livre-arbítrio não exista, a sua ilusão é, certamente, uma das características distintivas da condição humana.

Seja como for, mesmo que o livre-arbítrio seja uma ilusão, será uma ilusão invencível. Quando deliberamos, quando ponderamos vários cursos de ação alternativos que se nos apresentam como possíveis, não podemos deixar de crer que estes são realmente possíveis e que temos o poder de escolher qualquer um deles. Mesmo que no passado remoto já estivesse determinado que escolheríamos bolo em vez de fruta, talvez também já estivesse determinado que, antes da decisão, consideraríamos possível escolher fruta em vez de bolo. (Galvão, 2019)

Estamos, pois, «condenados à liberdade» e temos que assumir a responsabilidade completa pela nossa existência (Sartre, 1978). Ou, como diz o Padre António Vieira: «Somos o que fazemos. Nos dias em que fazemos, realmente existimos».

 

Referências bibliográficas

OpenAI (2023). ChatGPT. https://chat.openai.com/. Consultado em 05.02.2023. «O ChatGPT é um modelo de linguagem desenvolvido pela OpenAI, baseado na arquitetura GPT-3.5. Ele é capaz de realizar diversas tarefas de linguagem natural, como responder perguntas, gerar texto, traduzir idiomas, entre outras. O modelo foi treinado com uma grande quantidade de dados textuais para aprender padrões e relações na linguagem, e usa essa aprendizagem para gerar respostas precisas e úteis para as perguntas que lhe são feitas.» Esta é a resposta do ChatGPT à pergunta «O que é o ChatGPT?». Embora o ChatGPT seja apresentado, e ele próprio se apresente, como um «um modelo de inteligência artificial», «projetado para imitar a inteligência humana na tarefa de processamento de linguagem natural», não encontramos nele nenhuma reflexão, nenhum pensamento, pelo que não podemos dizer que seja inteligente em qualquer sentido relevante do termo. Agradeço ao Desidério Murcho pelo facto de me ter chamado a atenção para isto.

Galvão, P. (2019). O enigma do livre-arbítrio. https://visao.sapo.pt/opiniao/2019-02-04-o-enigma-do-livre-arbitrio/. Consultado em 12/03/2023.

Inwagen, P. (2013). Vídeo «No Jardim da Filosofia - Peter van Inwagen sobre o problema do livre-arbítrio (legendado)». Entrevista de Aires Almeida a Peter van Inwagen. https://www.youtube.com/watch?v=YxGi0yilxF4. Consultado em 18/03/2023.

Morris, T. (2000). Filosofia para dummies. Rio de Janeiro: Editora Campus.

Rachels, J. (2009). Problemas da Filosofia. Lisboa: Gradiva.

RTP (2023). Entrevista RTP. Os sete anos de Marcelo Rebelo de Sousa na Presidência da República. https://www.rtp.pt/noticias/pais/entrevista-rtp-os-sete-anos-de-marcelo-rebelo-de-sousa-na-presidencia-da-republica_e1472139. Consultado em 09/03/2023.

RTP1 (2023). Telejornal de 17/03/2023, 20:27.

Sartre, J-P. (1978). O existencialismo é um humanismo (4.ª ed.). Lisboa: Editorial Presença.

Scruton, R. (2017). A natureza humana. Lisboa: Gradiva.

Searle, J. (2020). Da realidade física à realidade humana. Lisboa: Gradiva.

Sider, T. (2010). Livre-arbítrio e determinismo. In Eearl Conee e Theodore Sider. Enigmas da existência – Uma visita guiada à metafísica. Lisboa: Editorial Bizâncio.

Veríssimo, L. (2022). In podcast À Luz da Razão|Ep. 1329, jun. 2022 – Livre arbítrio – a ideia de uma vontade livre. Com o filósofo Luís Veríssimo. https://www.rtp.pt/play/p396/e620443/especial. Consultado em 12/03/2023.


Originalmente publicado na revista defacto, n.º 31, maio 2023 (revista do Agrupamento de Escolas Alberto Sampaio).

quinta-feira, 21 de outubro de 2021

Hume e a origem das ideias


Hume utiliza o termo "perceção" para referir quaisquer conteúdos da experiência (…). As perceções ocorrem quando o indivíduo observa, sente, recorda, imagina, e assim por diante, sendo que o uso atual da palavra cobre um leque muito menos vasto de atividades mentais. Para Hume, existem dois tipos básicos de perceções: impressões e ideias.

As impressões constituem as experiências obtidas quando o indi­víduo observa, sente, ama, odeia, deseja ou tem vontade de algo. Hume descreve este tipo de perceções como sendo mais "vívido" do que as ideias, termo com que o filósofo parece querer afirmar que as impres­sões são mais claras e mais pormenorizadas do que as ideias. As ideias, por sua vez, são cópias das impressões. Trata-se dos objetos do pen­samento humano quando os indivíduos recordam a sua experiência ou exercitam a sua imaginação.

Assim sendo, neste preciso momento, por exemplo, tenho uma impressão da minha caneta a movimentar-se pela página e de ouvir alguém a virar as páginas de um livro, atrás de mim, na biblioteca. Tenho, ainda, uma impressão da textura do papel a tocar na minha mão. Estas experiências sensoriais são vívidas, visto que seria difícil conven­cer-me de que me encontro apenas a recordar experiências passadas ou a sonhar. Mais tarde, enquanto estiver a escrever estas linhas no meu computador, lembrar-me-ei, sem dúvida, deste momento e recordarei as minhas impressões. Nessa altura, estarei a ter ideias e não impres­sões, ideias que não serão marcadas pela mesma vividez (ou "vivaci­dade", para usar a terminologia de Hume) que caracteriza as impres­sões sensoriais que estou a sentir neste momento e das quais as ideias serão cópias.

Hume reformula a asserção de Locke de que não existem ideias inatas, sob a forma todas as ideias humanas são cópias de impres­sões. Por outras palavras, é impossível aos seres humanos ter uma ideia de algo que não tenha primeiro experimentado enquanto impressão.

Como lidaria, então, Hume com a capacidade de um indivíduo de imaginar uma montanha dourada embora nunca tenha visto uma e, logo, nunca tenha tido a impressão de uma? A resposta do filósofo baseia-se numa distinção entre ideias simples e complexas. As ideias simples derivam de impressões simples. Trata-se de ideias de coisas como a cor e a forma, ideias que não podem ser divididas em partes mais pequenas. As ideias complexas são combinações de ideias sim­ples. Deste modo, aquela ideia de uma montanha dourada nada mais é do que uma ideia complexa composta pelas ideias mais simples de "montanha" e de "dourado". E estas ideias simples derivam, em últi­ma análise, da experiência tida pelo indivíduo de montanhas e de objetos dourados.

A comprovação da crença de que todas as ideias humanas derivam de impressões anteriores é constituída pela proposta de que qualquer destas ideias pode, por meio da reflexão, ser decomposta em partes que a enformam, que, como se poderá depois confirmar, resultam das impressões. Mais corroboração para esta explicação resulta da obser­vação de que um homem completamente cego de nascença seria inca­paz de imaginar a cor vermelha, uma vez que nunca tinha tido impres­sões visuais dessa cor. Similarmente, e de forma mais controversa, Hume declara que uma pessoa egoísta não seria capaz de formar uma ideia do sentimento de generosidade.

No entanto, embora Hume defenda que o seu aperfeiçoamento da teoria das ideias de Locke poderá explicar a origem de qualquer ideia em particular, o filósofo assinala a existência de uma exceção a este princípio, constituída pelo tom de azul desconhecido. Alguém que tenha observado um vasto leque de tons de azul, pode nunca ter tido a impressão de certo tom em particular. Não obstante, essa pessoa pode formar uma ideia deste tom de azul desconhecido. Segundo a teoria de Hume, tal seria impossível visto esse indivíduo não possuir qualquer impressão simples à qual pudesse corresponder a ideia dessa cor. Contudo, não se revela excessivamente preocupado com este apa­rente contraexemplo, uma vez que se trata de uma situação demasia­do excecional para o levar a redefinir os seus princípios básicos em função dela.

Warburton, Nigel (2013). Grandes livros de filosofia. 2.ª ed. Lisboa: Edições 70, pp. 131-133.

terça-feira, 25 de junho de 2019

O melhor dos mundos possíveis?

António Padrão



«Seja qual for a maneira como Deus criou o mundo, ela teria sido sempre regular e com uma certa ordem geral. Deus, porém, escolheu a mais perfeita, ou seja, aquela que é ao mesmo tempo a mais simples em hipóteses e a mais rica em fenómenos.»
Gottfried Leibniz (1686), Discurso de Metafísica, § 6.
Mundos possíveis
Imagine, caro leitor, que o autor deste texto que está agora mesmo a ler não é calvo (para quem não sabe, o autor deste texto é mesmo calvo). Imagine que a Lua não existe. Imagine que não existem buracos negros. Imagine que, em 2014, António José Seguro tinha vencido as primárias do PS e que António Costa não tinha chegado a primeiro ministro. Imagine que Luís Montenegro (que quis fazer a Rui Rio o que António Costa fez a António José Seguro – apesar de afirmar o contrário) tinha conseguido vencer a disputa pela liderança do PSD e que era, agora, presidente do PSD. Imagine que António Costa, quando constituiu o governo, tinha nomeado outro ministro da Educação que percebesse alguma coisa de educação. Imagine que todos os alunos são mesmo estudantes. Imagine que não existe mal no mundo. Agora, imagine que o mundo é exatamente como é, exceto no que respeita à primeira coisa que imaginou: acabou de conceber um mundo em que o autor destas linhas não é calvo, não havendo mais nenhuma diferença em tudo o resto. Para cada uma das outras coisas que imaginou acima, é possível imaginar um mundo que só difere do atual naquilo que imaginou. Também é possível imaginar um mundo que difere do atual em duas, ou três, ou quatro, ou mesmo todas as coisas que imaginou antes. Espero que esteja a ver, caro leitor, aonde é que este exercício de imaginação nos leva: a uma infinidade de mundos possíveis.
Os filósofos utilizam a expressão «mundo possível» para se referirem a um modo como as coisas podem ser. E para se referirem ao modo como as coisas efetivamente são, utilizam a expressão «mundo atual» ou «mundo efetivo». É claro que o mundo atual, ou mundo efetivo, é também um dos mundos possíveis. «Atual», neste contexto, não significa «do tempo presente», mas «que existe em ato».
A ideia de mundos possíveis alternativos tem sido explorada por vários filósofos e por escritores de ficção científica, ou de romances, entre outros.
O melhor dos mundos possíveis
Será que vivemos no melhor dos mundos? Leibniz (1646-1716) – filósofo, matemático e erudito alemão – pensava que sim: Deus criou o melhor de todos os mundos possíveis. Deus tinha à sua escolha uma infinidade de hipóteses de criação do mundo e decidiu dar existência a este nosso mundo. E não foi o único a pensar tal coisa. Antes dele, Abelardo (1079-1142) defendeu que Deus não poderia ter feito um mundo melhor do que aquele que fez (Kenny, 2011). E Malebranche (1638-1715) sustentou que o mundo em que vivemos, criado por Deus, é apenas um entre os muitos mundos possíveis que Deus poderia ter criado, diferindo destes pela grande simplicidade das suas leis (Mautner, 2010).
O que há de comum nestas três posições? A ideia de que foi Deus quem criou o mundo.
Mas será verdade que Deus criou o mundo? Para ter criado o mundo, Deus tem de existir. Para Leibniz, Deus é o único ser necessariamente existente. Mas será verdade que Deus existe? Temos boas razões para acreditar na Sua existência? E será o conceito de Deus coerente? Estas questões exemplificam o tipo de problemas tratados em Filosofia da Religião. A Filosofia da Religião é uma área da filosofia que reflete sobre os conceitos e as crenças fundamentais das religiões: sobre os conceitos das religiões (por exemplo, os conceitos de Deus, de fé, de milagre e de omnipotência), procura compreender o seu significado e analisar a sua coerência; e sobre as crenças religiosas (por exemplo, as crenças de que Deus existe, de que há vida depois da morte, de que Deus sabe tudo a nosso respeito – incluindo o que vamos fazer no futuro –, de que a existência do mal é consistente com a perfeição de Deus), procura avaliar as justificações que podemos ter para elas.
Serão os atributos do Deus teísta consistentes?
Façamos de filósofos da religião e examinemos criticamente o conceito de Deus. Quando Abelardo, Malebranche ou Leibniz dizem que Deus criou o mundo, que ideia de Deus têm em mente? Quando dizemos que Deus existe, ou que Deus não existe, qual é o conceito de Deus que temos em mente? (Repare, caro leitor, que não podemos deixar de responder a esta questão, mesmo que digamos que não acreditamos em Deus. Se não acreditamos em algo, temos que ter uma ideia desse algo em relação ao qual dizemos que não acreditamos.)
O conceito de Deus que Abelardo, Malebranche ou Leibniz tinham em mente é o conceito de Deus teísta, isto é, um ser com os seguintes atributos: omnipotente (pode fazer tudo), omnisciente (sabe tudo), sumamente bom (moralmente perfeito), criador (fez o universo) e é uma pessoa (não é uma força da natureza, é um agente como nós).
Será o conceito de Deus teísta coerente? Algum dos atributos de Deus é em si incoerente? Poderá existir um ser com estes atributos? Serão os atributos do Deus teísta consistentes? Com esta última pergunta, o que queremos saber é se as seguintes proposições podem ser simultaneamente verdadeiras: Deus é omnipotente; Deus é omnisciente; Deus é sumamente bom; Deus é criador; Deus é uma pessoa. Se concluirmos que estas proposições não podem ser simultaneamente verdadeiras, então isso significa que os atributos do Deus teísta são inconsistentes; logo, não pode existir um ser com aqueles atributos. Logo, Deus será impossível. Mas, se conseguirmos mostrar que os atributos de Deus são consistentes, no sentido em que definimos anteriormente a consistência, daí não se segue que o Deus teísta exista mesmo; segue‑se apenas que pode existir. Vejamos um argumento que procura mostrar que um atributo de Deus é incoerente, e outro que procura mostrar que a combinação de atributos é inconsistente (para estes e outros argumentos, ver, por exemplo, Faria (2018), e Rowe (2011)).
O «paradoxo da pedra», como é conhecido, é um argumento que visa mostrar que há algo que Deus não pode fazer; portanto, não é omnipotente. O argumento pode ser apresentado assim:
Ou Deus tem o poder de criar uma pedra tão pesada que Ele próprio seja incapaz de a levantar ou não tem esse poder. Se tem o poder de criar tal pedra, então há algo que Deus não pode fazer: levantar a pedra que criou. Se não tem o poder de criar tal pedra, então há também algo que Ele não pode fazer: criar uma pedra tão pesada que Ele próprio seja incapaz de a levantar. Em qualquer dos casos, há algo que Deus não pode fazer. Logo, Deus não é omnipotente.
Vejamos agora um argumento que procura mostrar que a combinação de atributos divinos é inconsistente. Com este argumento, formulado por Faria (2018), citando Morriston (2001), pretende-se defender que os atributos da omnipotência e da perfeição moral são inconsistentes.
Suponha-se que há um Deus que é simultaneamente omnipotente e moralmente perfeito. Um ser omnipotente pode fazer qualquer coisa que seja logicamente possível. Ter a propriedade de ser moralmente perfeito implica ser impecável (ou ser incapaz de proceder de forma moralmente errada) e, por isso, há coisas que um ser moralmente perfeito não pode fazer, como assassinar, mentir, quebrar promessas, entre outras. Logo, há um Deus que simultaneamente pode fazer tudo o que é logicamente possível e simultaneamente não pode fazer tudo o que é logicamente possível. Logo, não há um Deus que é simultaneamente omnipotente e moralmente perfeito.
Serão estes bons argumentos? Serão argumentos sólidos? Se forem sólidos, isto é, válidos e com premissas verdadeiras, então, caro leitor, como seres racionais, só nos resta aceitar que o Deus teísta não existe nem poderia existir. Deixo ao leitor o desafio de mostrar onde está a falha destes argumentos, mas digo-lhe já que não está na validade. Portanto, se pensa que as conclusões dos argumentos são falsas, tem que mostrar que pelo menos uma das premissas de cada um dos argumentos é falsa.
O problema do mal
Acredito que o leitor tenha sido bem-sucedido na resposta ao desafio que lhe lancei, isto é, que foi capaz de mostrar que afinal aqueles dois argumentos não provam que o Deus teísta não possa existir. Mas se não foi capaz, pode ler em Rowe (2011) e em Faria (2018) uma discussão daqueles argumentos.
Regressemos a Leibniz, que, como vimos, defende que Deus não só criou o mundo, como criou livremente o melhor dos mundos possíveis. E por que razão criou Deus o melhor dos mundos possíveis e não qualquer outro?
Leibniz sublinha que o pensamento de Deus contém uma infinidade de mundos possíveis […]. Todos estes mundos são compostos de substâncias e acidentes e têm uma certa tendência para existir. Mas apenas o melhor deles, i.e., a composição mais perfeita, é efetivado. A competição entre mundos possíveis é decidida pelo princípio do melhor, princípio que favorece o mundo que melhor realiza o princípio minimax, i.e., um mundo com um mínimo de regras ou leis e um máximo de estados de coisas, ou, como Leibniz também diz, um mínimo de causas e um máximo de efeitos, ou um mínimo de meios e um máximo de fins. (Mautner, 2010, pp. 442-443)
Sendo Deus um agente racional, omnisciente e infinitamente bom, não poderia ter deixado de escolher o melhor. Além disso, Deus criou um mundo com uma harmonia preestabelecida.
Mas – objetará o leitor – como pode ser este o melhor dos mundos possíveis, se o autor deste texto nem sequer pode candidatar-se a guarda-florestal, por ser careca no mundo atual, ao contrário do que aconteceria naquele outro mundo possível que imaginou, logo no início do texto, que era em tudo igual a este, exceto na calvície do autor deste texto? (Sim, caro leitor, ambos acabámos de ouvir nos noticiários que o aviso de abertura de procedimento concursal para o ingresso na carreira de guarda-florestal, recentemente publicado no Diário da República, impede os carecas de se candidatarem. Ora, ambos pensamos que um mundo em que o autor deste texto possa fazer tudo o que o que pode fazer no mundo atual, e ainda por cima possa candidatar-se a guarda-florestal, é melhor do que o mundo atual). E então, continuará o leitor, aquele outro mundo possível que imaginámos, que difere do atual apenas por ter outro ministro da Educação que percebe alguma coisa de educação, não será melhor do que o atual? (Não é plausível pensar que é melhor ter alguém a decidir sobre assuntos de que é conhecedor do que alguém que não percebe nada desses assuntos?)
Parece que com estes exemplos embaraçámos Leibniz, mas não. O facto de o nosso mundo ser o melhor dos mundos possíveis não significa que seja o melhor para cada indivíduo que nele existe. Pode haver um mundo possível que seja o melhor para um indivíduo em particular (por exemplo, o mundo em que o autor deste texto não seja calvo) ou para um conjunto de indivíduos (por exemplo, para os alunos, pais e professores portugueses, o mundo em que o ministro da Educação perceba alguma coisa de educação), mas, globalmente, o mundo não seria melhor. Para Leibniz, seria impossível tornar este mundo melhor, melhorando ligeiramente qualquer substância, ou conjunto de substâncias e qualidades, pois isso iria perturbar o equilíbrio do mundo e piorar outra coisa qualquer. Ou seja: se tivéssemos um ministro da Educação melhor, isso iria, certamente, impedir que outros países tivessem bons ministros da Educação, de modo que, globalmente, o mundo seria pior.
Talvez o leitor tenha pensado numa objeção mais forte: como pode ser este o melhor dos mundos possíveis, se existe nele tanto mal? Terramotos, epidemias, doenças, homicídios, guerras, genocídios, pedofilia, fome. Como é possível que exista mal no melhor dos mundos possíveis? Como é possível que exista mal num mundo criado por Deus? Deste modo, estará o leitor a formular o problema do mal – uma das mais fortes objeções à existência de Deus.
Será que esta objeção embaraçaria Leibniz? Bem, Leibniz refletiu sobre o problema do mal, escrevendo até uma obra – Ensaios de Teodiceia – para defender a justiça divina perante os males do mundo e justificar as atividades de Deus.
Pode ser que voltemos a Leibniz na próxima defacto. Até lá, deixo ao leitor o desafio de responder ao problema do mal, a saber: será a existência de Deus compatível com a existência de mal no mundo?

Referências bibliográficas
Faria, D. (2018). Deus em Análise – Uma Introdução à Filosofia da Religião. Edição de Autor.
Kenny, A. (2011). Ascensão da Filosofia Moderna: Nova História da Filosofia Ocidental, vol. 3. Lisboa: Gradiva.
Mautner, T. (2010). Dicionário de Filosofia. Lisboa: Edições 70.
Rowe, W. L. (2011). Introdução à Filosofia da Religião. Lisboa: Babel.

Originalmente publicado na revista defacto, n.º 27, maio 2019 (revista da Escola Secundária de Alberto Sampaio).

sábado, 27 de abril de 2019

A existência de Deus

 Textos e problemas de filosofiaSerá que Deus existe? Muitas pessoas são educadas de forma religiosa, nunca colocando em causa a sua fé. Outras são educadas de forma não religiosa, nunca colocando em causa a sua ausência de fé. Mas, independentemente do modo como fomos educados, haverá boas razões para pensar que Deus existe ou não? Recorrendo exclusivamente ao pensamento e aos sentidos, não nos apoiando por isso na tradição e nos livros considerados sagrados, poderemos provar que Deus existe? Por prova não se entende, neste contexto, uma prova científica ou matemática; o que está em causa é saber se há bons argumentos a favor da existência de Deus — argumentos que qualquer pessoa que os avalie de forma imparcial estará disposta a aceitar, independentemente do modo como foi educada.

Das diferentes concepções de Deus, a filosofia tem-se ocupado na sua maior parte da concepção teísta de Deus.

n O teísmo é a crença de que o Deus teísta existe.
n O Deus teísta é sumamente bom, omnipotente, omnisciente, criador e uma pessoa.

O teísmo defende que Deus é moralmente perfeito, todo-poderoso, tem conhecimento de tudo, criou tudo o que existe e não é uma força impessoal, mas sim uma pessoa não humana.

n O ateísmo é a crença de que Deus não existe.
n O agnosticismo é a suspensão da crença quanto à existência de Deus.

n A  é uma crença religiosa.

Na discussão sobre a existência de Deus, foram apresentadas ao longo dos tempos diferentes versões dos seguintes tipos de argumentos:
1. Argumentos cosmológicos: 1) Baseados na ideia de que tem de haver uma só causa para a totalidade do universo; 2) baseados na contingência do mundo.
2. Argumentos ontológicos: Baseiam-se na ideia de que a existência de Deus se segue da sua definição.
3. Argumentos do desígnio: 1) Baseados na ordem do mundo (nomológicos); baseados na adequação das coisas a fins (teleológicos).
4. Argumentos morais: Baseiam-se na ideia de que a existência de Deus é uma exigência da moralidade.
5. Argumentos baseados nos milagres: Baseados na ideia de que a ocorrência de acontecimentos que violam as leis da natureza prova a existência de uma inter­venção divina.
6. Argumentos baseados na experiência religiosa: Baseiam-se nas visões ou sentimentos que os crentes têm.
         
Almeida, A. & Murcho, D. (2006). Textos e problemas de filosofia. Lisboa: Plátano Editora, pp. 166-167.

terça-feira, 13 de novembro de 2018

Pseudociência

Pseudociência, ou falsa ciência, é tudo o que pretende passar por ciência, talvez na tentativa de obter o prestígio e o reconhecimento de que a ciência goza, mas não é de facto ciência. E não é ciência porque não reconhece de forma permanente e inequívoca a exis­tência de eventuais erros. Um cientista procura sempre saber se está enganado (se está, fica contente quando deixa de estar). Um pseudocientista, se esta designação faz algum sentido como pro­fissão, não admite que se engana e não procura por isso o erro (mais: costuma ficar irritado quando lhe apontam o dislate). As atividades pseudocientíficas são numerosas no mundo de hoje: exemplos são a numerologia, a astrologia, a radiestesia, a alquimia, a quiromancia, etc., etc. Há até quem leia o futuro nas borras do café, tendo esse ofício não só uma designação especifica, como uma comunidade de adeptos. São mais as pseudociências do que as ciências.
Existe, em geral, uma relação histórica entre pseudociência e ciência: aquela precedeu esta (a numerologia foi anterior à matemá­tica, a astrologia anterior à astronomia, a alquimia anterior à química). Poderia, por isso, pensar-se que as pseudociências teriam sido substituídas pelas ciências e abandonadas, mas não é assim: as pseudociências coexistem hoje com as ciências, confundindo-se umas e outras aos olhos e nos cérebros de muita gente. Um paradoxo muito interessante das sociedades desenvolvidas (e cujo desenvolvimento deriva precisamente do cultivo das ciências e das tecnologias) é o facto de as pseudociências continuarem a ocupar um papel socialmente relevante.
Mas convém estar atento e descobrir as diferenças: assim como a definição de atividade científica — a busca do erro — não assenta nas várias atividades pseudocientíficas, também os traços característicos da ciência — a comunicação e a acumulação — não se encontram onde a ciência falta. A astrologia não é astronomia porque um astrólogo não se expõe à critica dos pares (onde é que já se viu um astrólogo corrigir outro?) e porque a astrologia de hoje é essencialmente a astrologia de há um século (pode até ser feita com computadores, mas a forma não rejuvenesce o conteúdo).
Usando estes critérios simples, não será difícil ao leitor distinguir entre o que é ciência e o que, não o sendo, quer passar por ela.
Portugal, um pais em desenvolvimento, está cada vez mais exposto a correntes pseudocientíficas. Qual é o remédio? Mais ciência, mais cultura científica. Os cientistas, os professores de ciências, os cidadãos cientificamente cultos têm o dever, mais do que o direito, de mostrar ao público o valor da ciência, o que ela já conseguiu para o enriquecimento humano e o mais que poderá ainda conseguir (e que excede em muito os resultados da tecnologia que nos têm garantido a sobrevivência física). A ciência é um ingrediente da cultura, da civilização neste planeta. Nas palavras autori­zadas de Albert Einstein, escolhido pela revista Time como «homem­ do século»:
Comparada com a realidade, a nossa ciência pode parecer primi­tiva e infantil, mas é a coisa mais preciosa que temos.

Fiolhais, C. (2002). A coisa mais preciosa que temos. Lisboa: Gradiva, pp. 20-21.

Demarcação

Há um grande ceticismo sobre a possibilidade de se distinguir efetivamente a ciência da não-ciência. A ideia de que não podemos ter um critério de demarcação satisfatório é motivada pelas tentativas falhadas de prover tal critério no passado, e pela observação da diversidade cada vez maior de métodos e finalidades das disciplinas que somos inclinados a considerar como científicas. Como podemos esperar oferecer uma explicação unificada do que faz da investigação uma investigação científica, em disciplinas tão diferentes como a física, a geologia e a economia?
Ainda que a tarefa de delimitar a ciência possa parecer infrutífera, há muito boas razões para continuar a insistir. É importante saber em que especialistas se deve confiar, que projetos de investigação financiar, que teorias ensinar nas escolas. E as decisões sobre estas questões não podem ser tomadas apenas com base na consistência teórica ou na aparente adequação da teoria aos dados empíricos. Precisamos de uma explicação do que a ciência é, do que os cientistas fazem e de que metas e métodos caracterizam a investigação científica. Não é provável que a explicação bem‑sucedida (se é que tal coisa existe) seja muito específica, pois é um facto que a especialização conduziu a uma série de conceitos diferentes de indícios e, além do mais, a diferentes critérios para o êxito nas ciências naturais e entre estas e as ciências sociais.
As questões ligadas à delimitação da ciência adquirem grande importância na sociedade contemporânea, onde a ciência é investida de uma autoridade e responsabilidade especiais. Os cientistas são muitas vezes quem aconselha os governantes sobre as políticas a seguir, e as suas opiniões são amplamente solicitadas e ouvidas nos meios de comunicação. Em virtude dos seus conhecimentos especializados, do seu estatuto enquanto cientistas, alguns deles são chamados a encontrar soluções para muitos dos nossos problemas quotidianos, desde lidar com os efeitos das secas a evitar que novos programas de ensino produzam efeitos adversos nas crianças. Se é atribuída tanta responsabilidade quer aos cientistas quer à comunidade científica como um todo, parece que precisamos com alguma urgência de uma explicação sobre o que é uma disciplina propriamente científica, por oposição ao exercício de disciplinas que não partilham da mesma respeitabilidade e autoridade social, como a astrologia e a quiromancia. Além do mais, fazer investigação científica em muitas áreas (em biomedicina, agricultura, em recursos energéticos renováveis, por exemplo) pode trazer grandes benefícios às pessoas e às sociedades, e portanto é algo que deveria ser amplamente apoiado e promovido. Se a ciência tem algum valor num contexto de recursos públicos limitados, ele está em fazer pressão para que possamos ser capazes de identificar exemplos genuínos de investigação científica e projetos de investigação válidos.
Na tradição, a discussão sobre o critério de demarcação entre a ciência e a não-ciência estruturava-se em torno da tentativa de explicar por que razão a física é uma ciência e a astrologia não, e de que maneira o método científico é diferente da magia ou da revelação divina. Hoje, porém, os filósofos que se interessam pelo critério de demarcação têm em mente um conjunto de questões inter-relacionadas, e não aspiram necessariamente a fornecer uma descrição da ciência que responda a todas elas de uma só vez.
Eis uma lista provisória:
·      Será que o tema da investigação é importante para se saber se um projeto de investigação é considerado científico?
·      Podem a antropologia, a psicologia e a economia ser consideradas ciências legítimas mesmo não sendo governadas por leis?
·      O criacionismo tem a aparência superficial de uma ciência. Ora, por que razão não é visto por muitos como uma teoria científica legítima?
·      Qual é a diferença entre a filosofia e a ciência, uma vez que ambas pretendem chegar a uma melhor compreensão dos fenómenos à nossa volta?
No século xx, filósofos inspirados por um movimento chamado Positivismo Lógico analisaram formas de obter e organizar conhecimento com vista a identificar diferenças importantes entre a ciência e a metafísica e entre a ciência e a ética. Os positivistas lógicos, muitos dos quais formados em ciências naturais, sociais ou matemática, acreditavam fortemente no valor da ciência (é por isso que se chamam positivistas lógicos), tentando justificar o seu estatuto de única fonte respeitável de conhecimento factual ao analisarem a estrutura lógica e a linguagem das alegações de conhecimento (é por isso que se chamam positivistas lógicos). Um dos objetivos deste capítulo é passar em revista e avaliar os pontos fortes e as limitações da sua explicação da demarcação entre a ciência e a não-ciência, antes de passar ao exame dos desenvolvimentos posteriores das suas ideias e das objeções que tal explicação originou.
Algumas destas objeções podem ser encontradas nas obras de Karl Popper, Paul Thagard e Paul Feyerabend. Popper, que partilha alguma da ênfase dos positivistas lógicos no valor e na objetividade da ciência, segue uma linha de orientação diferente na sua procura de um critério de demarcação. Acredita que a ciência é a tarefa racional por excelência e procura ativamente uma estratégia viável para distinguir as teorias científicas genuínas das teorias que à primeira vista parecem científicas, mas que não conseguem sê-lo (exemplos de pseudociência).
Ao contrário de Popper e dos positivistas lógicos, Thomas Kuhn dá ênfase aos fatores históricos e sociais que determinam o êxito de uma teoria científica ou de um projeto de investigação. Uma teoria ou um projeto podem ser considerados científicos num contexto histórico e social mas não noutro, pois os critérios que uma teoria ou um projeto precisam de satisfazer para poderem ser considerados ciência também variam com base na análise feita por Kuhn da ciência sensível à história, Thagard desenvolve um critério de demarcação dependente do contexto, que tenta explicar por que razão algumas disciplinas podem ver o seu estatuto mudar de científico para pseudocientífico ou vice-versa. Feyerabend adota uma posição mais radical, negando qualquer espécie de estatuto especial à ciência. Argumenta contra a pretensa supremacia da metodologia científica sobre tradições alternativas de pensamento.

Bortolotti, L. (2013). Introdução à filosofia da ciência. Lisboa: Gradiva, pp. 17-20.