domingo, 19 de janeiro de 2014

Aparência e realidade - o problema do conhecimento

Será o conhecimento possível?
Veja este vídeo disponibilizado por Domingos Faria, do Manual Escolar 2.0 - Filosofia, aqui:
https://www.youtube.com/watch?v=KMhigIfaKxU

Conhecimento a priori e conhecimento a posteriori

Conhecimento a priori

O conhecimento a posteriori e a priori são modalidades epistémicas. Uma proposição é conhecível a priori se, e só se, pode ser conhecida sem o concurso da experiência empírica. Assim, 2 + 2 = 4 é uma proposição conhecível a priori porque posso conhecê-la recorrendo unicamente ao pensamento. Mas para saber que a água é H2O tenho de me socorrer da experiência empírica — não posso fazê-lo recorrendo unicamente ao pensamento. Dada a definição de analiticidade [uma frase é uma verdade analítica se, e só se, o significado das palavras que nela ocorrem e a sua sintaxe for suficiente para saber que é verdadeira], é fácil perceber que todas as frases analíticas exprimem proposições conhecíveis a priori. Pois se para saber o valor de verdade de uma frase analítica basta reflectir sobre o significado das palavras e a sintaxe da frase, isso significa que não é necessário recorrer à experiência empírica para identificar como verdadeira a proposição expressa.
Todo o conhecimento proposicional é uma relação entre um agente cognitivo e uma proposição que é por ele conhecida. Logo, também o conhecimento a priori é uma relação entre um agente cognitivo e uma proposição que é por ele conhecida. Assim, um modo mais rigoroso de definir conhecimento a priori é o seguinte:
  • Uma dada proposição é conhecível a priori por um dado agente cognitivo se, e só se, esse agente pode conhecer essa proposição sem recorrer à experiência empírica.
Posto isto, considere-se as seguintes duas frases:
1) Se Sócrates era um ser humano, era um ser humano.
2) Sócrates era mais pesado do que Platão.
Os recursos envolvidos para poder conhecer o valor de verdade destas frases diferem substancialmente. No primeiro caso, basta raciocinar; no segundo, é preciso recolher informações históricas sobre Sócrates e Platão. No primeiro caso, o agente cognitivo limita-se a pensar; no segundo, é preciso consultar documentos, testemunhos e estudos.
No entanto, para que alguém saiba que a primeira frase é verdadeira tem de compreender as palavras que nela ocorrem. Se um polícia chinês que nada saiba de português for confrontado com uma inscrição desta frase num bloco de notas de um presumível assassino, terá de consultar dicionários e gramáticas, ou falar com pessoas que saibam português. Só depois desta actividade empírica poderá o polícia chinês perceber que a frase é verdadeira. Todavia, isto não impede a frase 1, que exprime uma verdade lógica elementar, de ser conhecível a priori.
O conhecimento do significado das palavras, apesar de claramente empírico, não torna a frase 1 unicamente conhecível a posteriori. Continua a existir uma diferença crucial entre o tipo de experiência necessário para determinar o valor de verdade das frases 1 e 2. O conhecimento necessário para determinar o valor de verdade da frase 1 é meramente linguístico; o conhecimento necessário para determinar o valor de verdade da frase 2 é extralinguístico.
A experiência empírica necessária para compreender o significado das palavras não conta. Esta decisão não é arbitrária. Para determinar o valor de verdade de qualquer frase, seja ela qual for, é necessário ter um conhecimento, que terá de ser empírico, do significado das palavras envolvidas. Logo, se não aceitássemos a nossa decisão, a categoria do conhecimento a priori ficaria vazia. No entanto, é óbvio que há uma diferença substancial entre saber que se Sócrates era mortal, era mortal e saber que Sócrates era mais pesado do que Platão. No primeiro caso não temos de possuir qualquer informação factual além da linguística; no segundo, a informação linguística, só por si, não é suficiente para determinar o valor de verdade da frase. Logo, há uma distinção que deve ser mantida e que corresponde à divisão tradicional entre conhecimento a priori e conhecimento a posteriori.
Há uma excepção adicional. As verdades da aritmética e da lógica são, tipicamente, susceptíveis de ser conhecidas a priori. No entanto, podemos ser incapazes de determinar por puro raciocínio que uma fórmula como {(p v q) Λ [(p -> r) Λ (q -> r)]} -> r é logicamente verdadeira. Para determinar o valor de verdade desta fórmula, podemos ter de fazer uma tabela de verdade. Todavia, o conhecimento assim obtido é ainda a priori. Fazer uma tabela de verdade é uma mera extensão da capacidade de cálculo; nada diz sobre o mundo para além da tabela de verdade. Apesar de podermos ter de recorrer a papel e lápis para realizar alguns cálculos complexos, como equações ou fórmulas lógicas complexas, o resultado é conhecido a priori.

 A teoria tradicional do a priori

Na tradição filosófica há aparentemente a ideia de que o que é conhecido a priori por um agente, não poderia ter sido conhecido a posteriori por esse agente. Kripke argumenta que esta ideia está errada. Os exemplos são muito simples: apesar de eu poder saber a priori que a soma de 2345 com 12445 é 14790 — porque posso fazer um cálculo mental —, posso também conhecer a posteriori este resultado, através de uma calculadora, ou perguntando a alguém que tenha feito o cálculo.
Uma rota segura para a confusão é falar de proposições a priori e a posteriori, em vez de conhecimento a priori ou a posteriori. Como vimos, o conhecimento é uma relação entre agentes cognitivos e proposições; logo, as proposições não são primitivamente a priori ou a posteriori — o que elas são é susceptíveis de serem conhecidas a priori ou a posteriori. A distinção pode parecer menor, mas é crucial para evitar confusões. Uma mesma proposição pode ser conhecida, pelo mesmo agente cognitivo ou por diferentes agentes cognitivos, de maneiras diferentes. Por exemplo, na escola, o meu professor pode ensinar-me o teorema de Pitágoras. O teorema foi por mim conhecido a posteriori. Mais tarde, depois de aprender mais geometria, posso demonstrar por mim mesmo o teorema; e quando faço isso passo a ter um conhecimento a priori do teorema. Mas há casos em que isto não pode acontecer; na escola aprendi também que Sócrates foi condenado à morte. Mas, por mais que pense, nunca poderei estabelecer a priori que isso é verdade.
O modo mais justo de entender a distinção tradicional entre o a priori e o a posteriori é o seguinte: há uma classe de proposições que não são conhecíveis a priori (pelos seres humanos). Por uma liberdade de linguagem podemos dizer que essas são proposições a posteriori. Mas é preciso ficar claro que se usarmos esta terminologia, somos forçados a dizer algo que parece uma contradição: que uma proposição a priori pode ser a posteriori. Espero que seja claro que não se trata de uma contradição, mas de um facto banal: quer apenas dizer que uma proposição da aritmética, por exemplo, pode ser conhecida pelo pensamento puro; mas também pode ser conhecida por testemunho, caso em que é conhecida a posteriori. O ponto crucial é que estas proposições que são conhecíveis a priori contrastam com proposições que não são conhecíveis a priori, como a proposição expressa pela frase «A água é H2O». Todas as proposições conhecíveis a priori são conhecíveis a posteriori; mas há uma classe de proposições que só são conhecíveis a posteriori.
Os filósofos tradicionais não mostraram qualquer interesse no facto de uma proposição conhecível a priori ser também conhecível a posteriori porque talvez estivesse subentendido que estavam a falar unicamente de «conhecimento primitivo». Neste sentido, o teorema de Pitágoras, por exemplo, é conhecível a posteriori, mas não é primitivamente conhecível a posteriori; no princípio da cadeia causal do conhecimento, alguém teve de conhecer a priori o teorema de Pitágoras para depois o poder transmitir a posteriori a outra pessoa. Podemos assim dizer que apesar de as verdades conhecíveis a priori serem derivadamente conhecíveis a posteriori, nenhuma verdade conhecível a priori é primitivamente conhecívela posteriori.
Neste aspecto, as ideias de Kripke são muito mais conciliáveis com as ideias tradicionais do que pode parecer à primeira vista. Todavia, há um aspecto no qual as ideias de Kripke são irreconciliáveis com as teorias tradicionais. Diz-se por vezes que Kripke defende o «necessário a posteriori». É preciso saber exactamente o que isto quer dizer. Uma interpretação excessivamente fraca é que as verdades necessárias conhecíveis podem ser conhecidas a posteriori. Esta interpretação demasiado fraca é conciliável com as ideias tradicionais, pois trata-se apenas da ideia de que qualquer verdade conhecível é derivadamente conhecível a posteriori. A interpretação que capta o verdadeiro alcance das ideias de Kripke é a seguinte: há verdades necessárias conhecíveis que não são conhecíveis a priori — como «A água é necessariamente H2O». E esta ideia é irreconciliável com as ideias tradicionais.
Todavia, a teoria de Kripke é muito menos espantosa do que pode parecer à primeira vista. Considere-se o seguinte argumento:
Todos os seres humanos são mortais.
Sócrates era um ser humano.
Logo, Sócrates era mortal.
A conclusão não é conhecível a priori; no entanto, pode ser obtida por «meios lógicos». Se pensarmos que tudo o que se conhece por meios lógicos é conhecível a priori, ficamos com um enigma. Enigma que se esclarece quando temos em consideração que não basta saber que esta conclusão se deriva validamente das premissas em causa para saber que é verdadeira; para saber que a conclusão é verdadeira é preciso também saber que as premissas são todas verdadeiras. Ora, as premissas não são conhecíveis a priori. Logo, também a conclusão não é conhecível a priori.
Kripke mostrou que há um certo tipo de verdades necessárias que só conhecemos indirectamente, por meio de inferências em que pelo menos uma das premissas só é conhecível a posteriori. O problema da teoria tradicional foi não ter tido em conta que em certos casos o conhecimento só pode alcançar-se indirectamente, por meio de uma inferência. De facto, se pensarmos que todas as proposições conhecíveis são susceptíveis de ser directamente conhecidas, não se vê como poderemos conhecer verdades necessárias que não sejam lógicas ou matemáticas — e como estas verdades são conhecíveis a priori somos levados a concluir que todas as verdades necessárias conhecíveis são conhecíveis a priori. A teoria de Kripke não nega que todas as verdades necessárias directamente conhecíveis sejam conhecíveis a priori(como as verdades da lógica e da matemática). O que nega é que todas as verdades necessárias sejam directamente conhecíveis; defende que certas verdades necessárias (como «A água é H2O») só podem ser conhecidas indirectamente, por meio de raciocínios com várias premissas. E quando os únicos raciocínios disponíveis para conhecer essas verdades são raciocínios com pelo menos uma premissa a posteriori, essas verdades só poderão ser conhecidas a posteriori.

Murcho, D. (2002). Essencialismo naturalizado. Coimbra: Angelus Novus, pp. 20-24.

quinta-feira, 9 de janeiro de 2014

A questão dos critérios valorativos

O que são os valores


Os valores refletem o que as pessoas consideram importante e significativo na sua vida. Damos importância à honestidade, à justiça, à democracia, à liberdade, à amizade ou ao conhecimento, por exemplo. Todas estas coisas têm valor para nós e queremos que elas desempenhem um papel central na nossa vida. Uma pessoa que dê valor à honestidade conduz-se com respeito pela verdade, cumpre com a palavra dada, não pratica a injustiça, etc. Um deputado que valorize a democracia não votará a favor de quaisquer propostas de lei que ponham em causa a realização de eleições livres ou os direitos das oposições. Alguém que valorize o conhecimento procurará estar informado sobre os progressos científicos, dedicará algum do seu tempo a aprofundar a sua cultura literária, etc. Num sentido muito geral, os valores refletem as nossas preferências e contribuem para caracterizar o tipo de pessoa que somos.
Os valores oferecem-nos critérios de ação. Permitem avaliar pessoas e situações, e ajudam-nos a classificar as coisas como boas ou más, desejáveis ou indesejáveis, benéficas ou prejudiciais. Em consequência, orientam as nossas decisões. Quando escolhemos a verdade em vez da mentira, estamos a usar a honestidade como critério para decidir o que fazer. Quando um pintor prefere certas cores em vez de outras, está a decidir em função de valores estéticos como a beleza e a harmonia. Honestidade e beleza são coisas a que damos importância; queremos que estejam presentes na nossa vida e que guiem as nossas decisões. Os valores dão-nos uma linha de rumo.
Além de guiarem as nossas decisões, os valores refletem-se nos juízos que fazemos sobre os mais variados aspetos da vida, desde as qualidades morais das pessoas com quem lidamos (o Luís é injusto, a Joana é corajosa), até á política do partido do governo (é preciso evitar que ganhe as próximas eleições, as medidas tomadas reforçam a justiça social, etc.). Grande parte da nossa vida consciente é passada a fazer juízos de valor sobre as mais variadas instituições e acontecimentos.
Apesar disso, os nossos juízos de valor nem sempre coincidem com os juízos de valor das outras pessoas. Diferentes pessoas podem ajuizar diferentemente sobre as mesmas coisas. É frequente haver desacordo sobre o valor estético de uma peça musical, de um quadro ou de uma obra literária. E também há desacordo sobre como avaliar moralmente o aborto ou a eutanásia. Estes desacordos distinguem as pessoas umas das outras mas também as diferentes sociedades humanas.

Atividade
Os valores são critérios de ação que usamos para avaliar situações e orientar os comportamentos (os nossos e os dos outros). Explique esta ideia.

Ruas, P. (2013). Diálogos de filosofia, vol.1. Lisboa: Texto, p. 85.

Estrutura do ato de conhecer (Filosofia 11.º ano)