domingo, 17 de abril de 2016

John Rawls - Uma Teoria da Justiça

Em que tipo de sociedade escolheria viver se não soubesse qual a posição que nela iria ocupar? A obra de John Rawls, Uma Teoria da Justiça, faculta os princípios para se construir uma sociedade justa e equitativa ao imaginar a resposta de uma pessoa razoável a esta questão. O livro, publicado pela primeira vez em 1971, mudou a filosofia política, e deu novo ânimo à tradição do contrato social, estabelecida por Hobbes, Locke e Rousseau. Apesar de ser um livro complexo e, a espaços, chato, é uma das obras da filosofia política mais lidas do século XX. O seu mais distintivo aspeto é a utilização da noção de «posição original» para chegar a conclusões quanto a equidade e justiça e como se deveria obtê-las nas nossas instituições sociais.

A posição original
Se tivéssemos que escolher os princípios que deveriam governar a melhor sociedade possível, poderíamos ser influenciados pela nossa classe social, profissão, orientação sexual, e por diante. A forma descoberta por Rawls de evitar este preconceito é conceber uma experiência mental, uma situação hipotética em que todos os factos sobre o nosso eu, e os seus desejos particulares, estão ocultos por um véu de ignorância. Temos que imaginar desconhecer se temos ou não emprego. De que sexo somos, se temos família, onde vivemos, se somos otimistas, pessimistas ou toxicodependentes. Contudo, simultaneamente, temos boas noções de política, economia, dos fundamentos da organização social e das leis da psicologia humana. Sabe-se que há bens essenciais indispensáveis a qualquer estilo de vida, que incluem certas liberdades, oportunidades, rendimento e dignidade. Rawls chama a esta situação de ignorância quanto ao nosso lugar em sociedade a «posição original».
Nesta fase hipotética de posição original, que princípios seria racional adotar-se para se organizar uma sociedade? Ao pôr esta questão pretende-se eliminar todas as características irrelevantes das nossas vidas que, de outra forma, tendem a interferir na nossa avaliação do tipo de sociedade que deveria existir. Rawls parte do princípio [de] que os princípios racionalmente escolhidos em condições de posição original teriam a especial pretensão de ser justos e que, sendo o restante igual, deveríamos adotá-los.
Os princípios que emergem deste processo não devem ser controversos, pois se realizássemos efetivamente a experiência mental não deveria haver diferença entre quaisquer indivíduos nela envolvidos. Isto porque na posição original todos os elementos que nos distinguem teriam sido eliminados. Os princípios deveriam ser, então, aqueles com que participantes racionais concordariam. Ao executar a sua experiência mental Rawls apresenta dois princípios essenciais, um relacionado com a liberdade, outro com a distribuição equitativa dos bens. Estes princípios consubstanciam as suas conclusões políticas básicas, que são liberais e igualitárias.
Contrariamente a alguns teóricos do contrato social, Rawls não afirma que todos acordaram quanto a estes princípios; antes, serve-se da sua experiência mental de posição original como forma de criar princípios básicos para a ordenação de uma sociedade justa, comparando-a depois com as intuições pré-existentes para fazer ajustes mais detalhados. Rawls acredita que os princípios para a ordenação da sociedade que emergem juntos merecem o nome «justiça como equidade», visto ter-se chegado a eles através de um processo racional e imparcial. O primeiro dos dois princípios assim gerados é o princípio da liberdade.

O princípio da liberdade
O princípio da liberdade afirma que «todos devem ter igual direito ao mais extenso sistema total de liberdades essenciais iguais compatível com um sistema semelhante de liberdade para todos». Por outras palavras, ao escolher, envolta num véu de ignorância, uma pessoa racional quereria que todos os membros da sociedade tivessem o mesmo direito às liberdades essenciais. Caso contrário, essa pessoa poderia vir a ser vítima de discriminação. Por exemplo, a liberdade de consciência, a liberdade de crença secular ou religiosa, seja ela qual for, é uma liberdade essencial para cuja restrição por parte do Estado não há justificação. Só quando as nossas ações ameaçam a liberdade de outrem é que a intervenção estatal se justifica, uma vez que a nossa liberdade neste aspeto é incompatível com liberdade idêntica para os outros. Mesmo os intolerantes têm direito à liberdade até ao ponto em que fazem perigar a liberdade dos outros. A lei é necessária para garantir as várias liberdades a que cada membro da sociedade tem direito.
Rawls estipula que os princípios que apresenta como escolhas racionais de qualquer um em posição original são ordenados lexicalmente. O que isto quer dizer é que estão hierarquizados de tal forma que o primeiro princípio tem que ser satisfeito antes de se considerar o segundo, o segundo antes do terceiro, e assim sucessivamente. Isto significa que o direito à liberdade igual é o princípio essencial na sua teoria, tendo sempre prioridade. As exigências deste princípio têm que ser satisfeitas em primeiro lugar e são mais importantes do que as do segundo princípio. O quadro de Rawls de uma sociedade justa é, assim, aquele em que a lei mantém e faz cumprir o direito à liberdade igual.

O princípio da igualdade de oportunidade e o princípio da diferença
O segundo princípio de Rawls, relacionado com a justa distribuição dos bens essenciais, consiste na realidade em dois princípios: o da justa igualdade de oportunidade e o princípio da diferença. No seu todo, este segundo princípio tem prioridade lexical sobre quaisquer princípios de eficiência, o que significa que a justiça é mais importante do que a utilidade.
O princípio da igualdade de oportunidade afirma que quaisquer desigualdades sociais ou económicas associadas a cargos ou trabalhos específicos podem apenas existir se esses cargos ou trabalhos estiverem abertos a todos em condições de igualdade de oportunidade. Ninguém pode, por exemplo, ser excluído dos trabalhos mais bem remunerados por motivos infundados, tais como a raça ou a orientação sexual. Para Rawls, a igualdade de oportunidade é mais do que antidiscriminação. Inclui, por exemplo, o facultar de educação para permitir a todos desenvolverem os seus talentos. Este princípio da igualdade de oportunidade tem prioridade lexical sobre a outra parte deste segundo princípio: o da diferença.
O princípio da diferença insiste que quaisquer desigualdades económicas ou sociais devem apenas ser toleradas na condição de trazerem maiores benefícios aos mais desfavorecidos da sociedade. Isto é a implementação da estratégia conhecida como «maximin». Maximin é a abreviatura de «maximizar o mínimo», que significa escolher a opção que possibilite a melhor solução no pior dos casos. O conceito será, talvez, mais fácil de perceber se considerarmos o exemplo de salários justos numa sociedade justa. Imagine-se duas situações. Na primeira, a maioria das pessoas aufere altos salários, mas dez por cento da população mal ganha para viver. No segundo caso, apesar do nível de vida ser, em média, mais baixo, os dez por cento da população em piores condições têm um razoável nível de vida. Para alguém a escolher em posição original, afirma Rawls, a segunda das duas situações é preferível pois garante que toda a gente na sociedade atingirá um razoável nível de vida: aqueles em piores condições não estão assim tão mal. No primeiro caso, contudo, apesar de haver bastante hipótese de terem um excelente nível de vida, há também um risco significativo de auferirem um salário que mal dê para viver. Ao adotar a estratégia maximin devemos minimizar os riscos mais graves e optar pelo segundo caso. Não vale pura e simplesmente a pena arriscar viver na mais abjeta pobreza.

Críticas a Uma Teoria da Justiça

A posição original
A principal crítica à noção de posição original afirma que é psicologicamente impossível libertarmo-nos do conhecimento de quem e daquilo que somos, mesmo numa experiência mental. Os nossos preconceitos iludem, inevitavelmente, o censor. Alguns críticos de Rawls afirmaram que tudo o que ele realmente fizera com a sua experiência mental foi confirmar os seus pré-existentes preconceitos liberais e dar-lhes uma aura de princípios racionalmente escolhidos. Não é realista pensar que se pode simplesmente ignorar o que se sabe e aquilo que é central à nossa existência.
Em defesa de Rawls pode aduzir-se que tudo o que ele demonstra é a dificuldade de utilizar a experiência mental de forma eficaz. Esta pode até ser o melhor mecanismo que possuímos para criar princípios para ordenar a sociedade, ainda que. por conter características da psicologia humana, seja suscetível de ser imperfeito em muitos aspetos. Rawls nunca afirmou que o seu método era infalível. Mas é fácil perceber que pode eliminar alguns princípios tendenciosos por estarem obviamente condenados ao fracasso.
Contudo, a posição original contém em si algumas assunções básicas. Rawls retira dela princípios que apresentam a visão de uma sociedade liberal, tolerante, em que as pessoas podem viver juntas e seguir as suas próprias conceções do que é bom e justo. A forma como a experiência mental está concebida dá uma grande prioridade à autonomia, a nossa capacidade de tomarmos decisões por nós próprios sobre como queremos viver as nossas vidas. Aqueles adeptos de tradições culturais e religiosas que conferem grande ênfase à hierarquia, à tradição e à obediência terão poucas razões para efetuar esta experiência mental de posição original visto esta estar imbuída da tendência para a conceção kantiana e liberal daquilo que deve ser uma agente moral racional.

Objeção utilitarista
Os utilitaristas poderiam contestar os princípios de Rawls com base no argumento de que estes não maximizam necessariamente a felicidade. Os utilitaristas acreditam que a ação moralmente correta em qualquer circunstância é aquela que, provavelmente, a maior quantidade de felicidade causará. Um dos principais objetivos de Rawls ao escrever Uma Teoria da Justiça era desenvolver uma alternativa coerente a este tipo de cálculo utilitarista. A defesa de uma gama de direitos à liberdade e, em particular, a implementação do princípio da diferença, dificilmente maximizará a felicidade. Uma consequência direta da insistência na tese de que as únicas razões para as desigualdades são as que beneficiam os mais pobres, é que muitas soluções sociais que causariam uma felicidade muito maior serão excluídas.
A resposta de Rawls às abordagens utilitaristas da sociedade é que visto que não se sabe qual a posição que iremos ocupar na sociedade quando escolhemos em posição original, a abordagem racional consiste em eliminar-se qualquer risco de se levar uma vida desagradável. O utilitarismo, pelo menos na sua forma mais incipiente, não salvaguarda os direitos humanos e as liberdades; não seria racional escolhemo-lo na posição original. A abordagem de Rawls enfatiza que pode haver propósitos mais importantes do que apenas alcançar o mais alto grau possível de felicidade.

Arriscar versus jogar pelo seguro
Adotar a estratégia maximin é uma forma de jogar pelo seguro. Garante que os mais pobres beneficiam com as desigualdades intrínsecas das instituições sociais. Contudo, muitos de nós descortinam motivos para se pôr algo em jogo, estando dispostos a arriscar algum desconforto pela possibilidade de uma recompensa substancial. Por que é que não é racional, na posição original, escolher uma sociedade em que haja um alto grau de probabilidade de que as coisas me corram muito bem, mesmo que, de facto, eu me possa dar mal? Para um jogador isto parecerá preferível à aposta segura das desigualdades restritas que resultam da aplicação do princípio da diferença. A resposta de Rawls é que a estratégia do jogador é demasiado arriscada; mas, por seu lado, o jogador crê que a abordagem de Rawls é demasiado conservadora.

A objeção  libertária
Filósofos libertários, como Robert Nozick (1938-2002), argumentaram que, para além de preservar alguns direitos essenciais, o Estado não deveria estar muito envolvido no controlo das instituições sociais. Nozick afirma que se justifica um Estado apenas nominal, que proteja os indivíduos contra o roubo e faça cumprir os contratos, e que atividades mais intervenientes do que estas violarão alguns direitos que não devem ser coagidos. Em contraste, a sociedade justa de Rawls taxaria, por exemplo, a propriedade, de uma forma que corrigisse a distribuição da riqueza.
Neste ponto, Nozick pressupõe que o direito que não deve ser coagido é mais fundamental do que direitos à igualdade de diversos tipos, e que direitos como a propriedade se sobrepõem a quaisquer outras considerações. Rawls parte de pressupostos diferentes: crê que os seus princípios, e em especial o princípio do direito a liberdade igual, são a essência de uma sociedade justa. Eis assim representadas duas abordagens contrastantes e incompatíveis da filosofia política.

Warburton, N. (2013). Grandes livros de filosofia. 2.ª ed. Lisboa: Edições 70, pp. 330-337.